Top 4 coisas impressionantes que abelhas fazem

Tamanho importa? Do cérebro, eu digo. As abelhas diriam que não. Com seus ínfimos cérebros de 1 mm3 e menos de 1 milhão de neurônios (nós temos, na média, 86 bilhões), elas se viram muito bem, obrigado. Elas veem o que nós não vemos, dançam pra se comunicar, possuem um senso de direção excelente e lidam até com conceitos abstratos.

Visão além do alcance

De toda o espectro de luz que existe no mundo, em diferentes comprimentos de onda, como humanos, vemos apenas uma pequena parte. Essa parte é chamada de, previsivelmente, o “espectro visível”.

Logo abaixo do vermelho (o menor comprimento de onda que enxergamos) tem o infra-vermelho e logo acima do violeta o ultra-violeta. Aí que entra a visão das abelhas: enquanto nós paramos no violeta elas nos ultrapassam e veem também o ultra-violeta.

Isso não é exclusividade das abelhas – aves também veem uma parte maior do espectro. O que isso quer dizer é que elas enxergam o mundo diferente de nós – o que não chega a ser uma surpresa. A questão é que isso é importante pra elas.

Quando você olha uma flor, você vê só a flor. Bonita e tal. As abelhas veem uma fonte de alimento. E as flores contam com as abelhas pra polinizá-las. Então as flores sinalizam pras abelhas: “Ei! Néctar! Aqui!”.

Esquerda: como você vê a flor. Direita: como a abelha vê a mesma, com direito a sombra no meio, indicando onde está o néctar.

Dancing Queen (Bee)

Abelhas dançam. Mas não é pra sacudir o esqueleto (elas nem tem esqueleto interno). Elas fazem uma “dança” pra avisar às outras sobre novas fontes de alimento. Mas é difícil falar de dança. Melhor assistir:

Como a pessoa explica no vídeo, elas fazem essa coisa meio em forma de 8 pra indicar em que direção e a que distância está a fonte de comida recém-encontrada.

Quem primeiro identificou a “dança” das abelhas foi o etólogo Karl von Frisch, que ganhou o Nobel por isso. Com algum atraso, porque inicialmente as pessoas receberam com ceticismo a ideia de que abelhas tivessem um sistema tão complexo de comunicação. Eventualmente, isso se tornou mais aceito. Fizeram estudos em que se monitora por radar o caminho das abelhas e como von Frisch já havia proposto, elas, de fato, usam a dança como meio de comunicação. É deixar o seu corpo falar por você.


Grandes navegadoras

Todo dia elas saem da colméia em missão exploratória, encontram fontes de alimento e voltam. Ok, nada muuuito impressionante. Aí entra um pesquisador empenhado e captura a abelha enquanto ela está tranquilamente indo de volta para a colméia. E leva ela para um lugar aleatório. E ela, após um momento de confusão, consegue encontrar o caminho e logo, logo está voltando pra casa, outra vez.

Essa tarefa aparentemente simples de voar por aí exige bastante das abelhas. Requer que elas reconheçam pontos de referência – a árvore que fica perto da colméia, o rio na beira do qual está a flor que encontrou mais cedo. Requer traçar rotas de um ponto ao outro, passando por outros lugares no meio do caminho: tipo quando você tem que passar no mercado, mas é meio contramão, porque agora você está indo visitar sua tia, então é melhor deixar pra ir no mercado na volta, porque aí o desvio é menor, já é caminho.

Se você se perder, pergunte pra uma abelha. Ela provavelmente conhece a região.

E elas parecem ter um mapa mental, pra coisas que não estão à vista – ou seja, elas não usam só o Sol como referência (como se acreditou por muito tempo). Se você faz elas acordarem na hora errada (com anestesia), elas ficam confusas quanto a posição do Sol (porque o horário é diferente, o Sol está em outro lugar no céu) e ficam com as rotas bagunçadas inicialmente. Mas logo depois conseguem corrigi-las, ignorando o Sol, e eventualmente acham a colméia e as flores no lugar de sempre, como num dia normal.

Conceitos abstratos

Esquerda e direita, igual e diferente. Conceitos associados não a uma “coisa” em particular, mas sim à relação entre uma ou mais “coisas”. E as abelhas conseguem lidar com esse tipo de conceito. Sabemos disso através de tarefas chamadas delayed matching to sample (DMTS, que pode ser traduzido como correspondência atrasada à uma amostra).

Numa tarefa dessas, você tem uma arena em forma de Y (veja foto abaixo). A abelha vê uma cor no círculo inicial, escolhido aleatoriamente entre azul e amarelo (como na foto de exemplo abaixo). Aí passa pelo buraco no meio e vê dois corredores, um com um círculo amarelo e outro com um círculo azul. E a recompensa está no corredor do círculo que tem a mesma cor do inicial.

A arena em Y para o teste (adaptado de Avarguès-Weber e Giurfa, 2013).

Depois que elas estão treinadas, você pode para de usar as cores originais (azul e amarelo) e mudar pra, sei lá, verde e vermelho, ou até abandonar as cores e usar padrões em preto e branco (tipo, barras verticais ou horizontais). E elas continuam conseguindo obter a recompensa quase sempre, porque elas aprendem o conceito de “igual” – aprendem que a escolha correta é a coisa igual à coisa que elas viram antes.

Conclusão

Mais respeito com as abelhas (como se elas já não merecessem por polinizar a maior parte dos nossos alimentos).

Nota: Escrito em algum momento de 2014.

Sonhos lúcidos

Você tá tomando café com a sua noiva. Eis que surge (que coincidência, hoje mesmo você pensou nele!) o seu professor favorito do jardim de infância. Ele pergunta como você está, você diz “tudo bem” e apresenta sua noiva. Depois comenta que ainda há pouco vocês estavam fugindo de um lagarto gigante e só escaparam porque fugiram pelo rio. Aliás, que sorte que o Leonardo DiCaprio estava lá pra te ajudar, porque você nem sabia nadar. Enfim, será que ele quer café? Tá bem frio aqui nesse iglu.

Nesse momento o acúmulo de incongruências faz você se dar conta de que está sonhando. Mas se você continua a sonhar … agora você está tendo um sonho lúcido.

Salvador Dalí supostamente aproveitava as imagens loucas dos sonhos como inspiração.

Mais ou menos 50% da população teve (e lembra de ter tido) pelo menos um sonho lúcido na vida. Daí, só pouco mais de 1% tem sonhos lúcidos frequentes – várias vezes por semana.
Apesar dessas óbvias dificuldades para conseguir voluntários, Daniel Erlacher e colegas fizeram um estudo interessante sobre esse tipo de sonho. Eles queriam saber se ações realizadas no sonho levam o mesmo tempo do que as mesmas ações realizadas na vida real.


Para isso, é necessário que exista algum meio de comunicação entre o pesquisador e o voluntário, o sonhador. Há a sugestão de que os movimentos rápidos dos olhos que fazemos durante uma das fases do sono (que inclusive leva esse nome: REM, pra rapid eye movement) são na verdade os movimentos que fazemos com os olhos no sonho, ao direcionar o olhar. E de fato, é possível combinar com os voluntários uma sequência de movimentos para transmitir mensagens. Por exemplo, direita-esquerda-direita-esquerda pode significar “Estou lúcido no sonho. Tá valendo!”, direita-cima-direita-cima pode significar “Comecei a tarefa” e meia-lua-pra-frente-soco-forte é “Hadouken!!!” (mas isso não relevante pra entender o estudo).

Sequências de movimentos podem ser usadas em fliperamas e estudos sobre sonhos.

Os pesquisadores treinaram os voluntários para executar três tarefas: contar – até 10, 20 ou 30 -, caminhar – dando 10, 20 ou 30 passos – ou fazer uma coreografia (contando junto … 1 2 3 4 1 2 3 4). Eles mediram o tempo que leva pra eles fazerem as tarefas na vida real e compararam com o tempo de realização das tarefas no sonho.


O que eles encontraram? Que, em geral, tarefas levam mais tempo nos sonhos do que na vida real.

Resultados para a tarefa de contar. Cada par de barras corresponde a um voluntário. Na mesma barra, a cor mais clara é “contar até 10”, a intermediária “até 20”, e a mais escura “até 30”. Em cinza: tempo que a tarefa leva na vida real. Em vermelho, o tempo que a mesma tarefa leva no sonho (gráfico adaptado de Erlacher et al., 2013)

Mas – e aqui está a descoberta importante – o tempo relativo é o mesmo: por exemplo, contar até 20 leva duas vezes mais tempo do que contar até 10, sonhando ou não. E eles encontraram a mesma coisa nas outras tarefas – caminhar e fazer a coreografia.

Os pesquisadores (que são de um instituto de ciência esportiva) sugerem que já que o tempo não é distorcido nos sonhos, existe a possibilidade de usar os sonhos pra treinar sequências motoras: pense em músicos e atletas treinando e aprendendo enquanto dormem (no estilo Admirável Mundo Novo). Um mundo em que podemos investigar os sonhos dessa maneira era provavelmente o sonho de Freud.

Nota: Escrito em algum momento de 2014.

Sobre etologia e dragões

Eu gosto bastante de animações. Pixar, Disney, DreamWorks. Confesso que Como treinar seu dragão parecia até meio bobo pelo título mas acabou se tornando uma das minhas animações favoritas. A história é ótima, a qualidade gráfica também, dragões sempre ajudam. Mas uma coisa que me chamou a atenção foi o comportamento desses dragões no filme.

Soluço e Banguela.

SPOILER ALERT!

Soluço acaba se tornando o cara dos dragões usando truques que ele aprende ao lidar com o seu próprio dragão. Por exemplo, ele nota que Banguela não gosta de enguias e se derrete com um carinho no papo. Depois ele usa isso pra manipular outros dragões e se tornar o guerreiro “matador” de dragões, surpreendendo todo mundo.

Agora, essa coisa toda de observar comportamentos e respostas pré-definidas (o medo/aversão, ou se derreter todo) a estímulos específicos (enguias, carinho no lugar certo) remetem às histórias clássicas da etologia.

Etologia é o estudo do comportamento animal em condições naturais, em oposição a estudar em condições artificiais num laboratório. A etologia começou com três caras (que depois ganharam o prêmio Nobel por esse trabalho pioneiro): Konrad Lorenz, Nikolaas Tinbergen e Karl von Frisch.

Os vencedores do Nobel de 1973.

Lorenz estudou o comportamento de corvos, gansos, insetívoros e várias outras espécies (ele conta vários episódios interessantes no livro King Solomon’s Ring). O trabalho mais importante de Karl von Frisch foi entender o significado da comunicação por dança das abelhas. Tinbergen (grande amigo de Lorenz até brigarem: um era judeu e o outro nazista) passou um bom tempo explorando os chamados padrões fixos de ação – uma sequência de comportamentos que é automaticamente disparada por um estímulo específico, bem como o que o Soluço explora nos dragões do filme (e mais claramente ainda na série do Cartoon Network).

Uma boa história da etologia vem dos peixes. O peixinho stickleback (da família Gasterosteidae, se alguém quiser saber) fica agressivo e territorialista durante a época de acasalamento. Ele ataca outros machos que se metem a nadar pela sua área.

O peixinho stickleback. Pavio curto.

A questão é: como ele sabe que o que ele está atacando é um outro macho? Será que ele tem um sistema visual complexo que reconhece um peixe macho rival? Niko Tinbergen suspeitou que o peixe não tinha um sistema tão sofisticado pra reconhecer peixes machos da sua espécie. Talvez ele tivesse um macete qualquer.

Pra tentar descobrir o que estava acontecendo, Niko Tinbergen construiu três modelos de “peixe”:

  • um bem realista, mas todo prateado/cinza; 
  • um bem simples, mas com a barriga vermelha, assim como os stickleback machos; 
  • um outro, com a barriga vermelha também, mas com formato diferente do stickleback, mais arredondado. 

Depois ele apresentou os três “peixes”, um de cada vez, para um stickleback de verdade. Veja por você o que acontece:

Se lembra um peixe e tem a barriga vermelha: ao ataque. Por outro lado, o stickleback ignora completamente o modelo mais realista. Se não tem a barriga vermelha, ele deixa pra lá. Parece que ele realmente tem um “macete” pra saber o que é um rival e o que não é.

“Como ele não percebe que o negócio é feito de plástico!? Isso nem parece com um peixe!”, alguém diria. Sim. Pode parecer que o peixe é bobo e pode ser enganado facilmente. Acontece que, no dia-a-dia de um stickleback selvagem, as coisas que se parecem com peixes e tem a parte de baixo vermelha costumam ser outros sticklebacks machos. Não é todo dia que ele se depara com um modelo de plástico, de barriga vermelha, construído e colocado ali por um pesquisador pra entender melhor o comportamento dele. E é muito mais fácil identificar simplesmente a cor vermelha do que tentar identificar o sexo a partir de várias outras que caracterizam um peixe macho. E ele aprende eventualmente que aquilo não é um peixe e muda sua maneira de agir.

Às vezes, comportamentos complexos seguem fórmulas simples, que podem ser facilmente manipuladas. O stickleback não está sozinho nessa: vários insetos que são predados por morcegos (que emitem ultrassom) pousam e ficam completamente imóveis quando ouvem ultrassom – pra passarem despercebidos pelo morcego. Outro exemplo: o próprio Tinbergen descobriu que um tipo de vespa usa a paisagem ao redor pra saber onde está a sua toca – se você desloca alguns gravetos e arbustos para o lado com cuidado, a vespa pousa no lugar errado (e imagina-se, entra num conflito interno similar à sensação de “onde eu deixei minha chave?”).

Cobra! Primeiro você corre, depois você para pra pensar do que está correndo.

E nós fazemos a mesma coisa em alguns casos. A nossa resposta a cobras (predadores com quem nossos ancestrais convivem há muitos milhões de anos) é extremamante rápida. Você tem neurônios específicos que reagem a imagens de cobras – provavelmente antes mesmo de você se dar conta que viu uma cobra. E, para seu alívio, às vezes é só um cipó ou uma raiz. Ou foi só algo parecido com uma cobra que um pesquisador colocou ali pra estudar o seu comportamento.

Nota: Escrito em algum momento de 2014.

O jogo da pós-graduação

Eu programo jogos por hobby desde que eu tinha uns 12 ou 13 anos. Na maior parte das vezes, a minha motivação vem do desafio de tentar reproduzir um aspecto específico que eu achei interessante em algum outro jogo ou de fazer um jogo que eu gostaria de jogar. Quer dizer, é mais porque eu me divirto fazendo e jogando jogos. Mas jogos são um meio artístico como qualquer outro (sobre isso, eu recomendo fortemente o livro How to do things with videogames, do Ian Bogost) e jogos que eu faço só por diversão não deixam de ser um modo de expressão criativa. Isso tudo é para dizer que uma vez eu fiz um jogo, por diversão, mas que acabou com uma mensagem – ainda que ela tenha aparecido lá sem eu estar super consciente dela (não que isso me isente das implicações da mensagem).

Se trata de um jogo em que o jogador se coloca como uma pessoa que faz pós-graduação em ciências biomédicas, na bancada. O design do jogo foi guiado pela minha experiência na pós-graduação, pelo que eu vi e vivi e acaba carregando as minhas perspectivas. Anedoticamente, as pessoas que de fato fizeram ou fazem pós-graduação se identificam com as situações do jogo (ou talvez os meus amigos tenham mentido pra mim quando disseram isso). Esse texto é uma tentativa de analisar o design e as mecânicas do jogo em relação às atividades de pesquisa e da pós-graduação (i.e. a pós-graduação no Brasil, nas ciências biomédicas, experimentais, de bancada, etc). Deixar a mensagem explícita. E funciona também como introdução ao jogo pra quem não fez um doutorado na bancada.

Esse é um bom momento caso você queira jogar o jogo, se você for o tipo de pessoa que não gosta de spoilers de jogo. O jogo está disponível nesse link (Windows).

Os aspectos da vida acadêmica que acabaram incluídos no jogo nascem a partir da minha experiência pessoal, situada numa pós-graduação específica, num momento específico. São bem particulares. Ainda assim, a mecânica central e os obstáculos principais – administração de tempo em cenários imprevisíveis, saúde mental, infraestrutura – parecem ter um apelo mais universal.

A mecânica principal do jogo consiste de manter um balanço entre (1) fazer todos os experimentos necessários para concluir o seu projeto de tese, (2) se manter em dia com todos os outros requisitos de um doutorado – aulas, estudo, análise de dados, escrever papers, eventualmente escrever a tese – e (3) preservar a sua saúde mental – guardando tempo para lazer, sono e todo o resto da vida para além do laboratório (porque viver não cabe no Lattes). Essencialmente, é um jogo de administração de tempo – que é um aspecto central em uma pós-graduação.

Um doutorado em ciências de bancada, no Brasil, envolve muitas dezenas de horas de disciplinas e palestras, pra começar – as essa é a menor parte. Fora essa carga horária, tem a carga horária variável de desenvolver o seu projeto de pesquisa. Variável, em várias escalas. Pode ser que leve os 4 anos, pode ser que leve 5 ou 6 (ou menos de 4). Pode ser que em alguns meses você trabalhe fins de semana, em outros você nem tenha experimentos pra fazer. Pode ser que você trabalhe 6 horas num dia e 12 no outro.

Parte disso é inerente à atividade científica. E pode ser bem prosaico. Digamos, suas culturas de célula vão morrer se ninguém for no laboratório trocar o meio de cultura no fim de semana ou um experimento exige que você passe a noite no laboratório por causa de passos que tem que ser feitos em intervalos específicos. Outras vezes, as razões são fruto da incerteza de trabalhar com o que você não conhece bem (se a gente conhecesse, não seria pesquisa, como Einstein bem disse). Por exemplo, dependendo dos resultados, a sua pergunta pode mudar, então o plano de longo prazo do projeto está sempre aberto a mudanças. Ou talvez você tenha que refazer meses de trabalho porque o anticorpo que você achou que marcava uma coisa, na verdade marca uma outra proteína também – e você descobriu só meses depois, quando fazia outros experimentos ou ao ler algum artigo. Isso tudo faz com que o retorno do trabalho científico não seja muito linear. Você pode trabalhar meses sem conseguir fazer um único experimento funcionar, e de repente resolver o problema em um dia. Todo o cuidado e esforço pode ter uma recompensa muito tardia, se tiver.

Fora os problemas inerentes à pesquisa, as circunstâncias locais adicionam um outro conjunto de coisas fora do seu controle direto. Como diz um amigo meu, existem muitos obstáculos “extra-epistêmicos”. Alguns a gente realmente não consegue antecipar: os fungos contaminam a sua célula e você tem que refazer um monte de experimentos. E tem os outros, talvez mais estressantes justamente porque a gente consegue antecipar. Falta luz, a geladeira desliga e o reagente estraga. Um equipamento quebra, mas a peça tem que ser importada e isso leva meses. E a peça fica presa na alfândega por mais uns meses. No Brasil, salvo breves períodos de bonança, não ter dinheiro pra pesquisa é a norma e isso se reflete na infraestrutura disponível – “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”, disse Darcy Ribeiro. Esse eventos também estão no jogo, como mecânicas simples de sorte/azar que adicionam um elemento aleatório na trajetória acadêmica do seu personagem. Você pode chegar um dia no laboratório pra concluir um experimento importante de várias etapas que você vem conduzindo há semanas … e descobrir que não tem água. (Inclusive, essa é a minha desculpa pra não corrigir alguns bugs que tem no jogo: se você tá muito perto de defender a sua tese virtual e o jogo trava e apaga todo o seu progresso … pois é, é assim que a gente se sente fazendo pesquisa, às vezes).

De um lado você tem toda a incerteza e imprevisibilidade sobre o ritmo do seu progresso – que em grande parte, está fora do seu controle. De outro lado, você tem o tempo, imparável. O prazo pra defesa, qualificação, o fim da sua bolsa, o futuro incerto que te espera após a defesa se você não tiver boas publicações: tudo isso vai se aproximando, bem previsivelmente, seguindo o calendário. Esse é um contraste que costuma ser fonte de preocupação constante na pós-graduação e imagino que contribua para os prejuízos tão falados para a saúde mental. Acho que tem um argumento a ser feito de que essa pressão por resultados regulares – com prazos e sem muita tolerância pra erros, setbacks e mudanças de plano – se opõe à natureza de fazer ciência básica, exploratória, e que isso tem consequências que nem se limitam só à pós-graduação. Mas isso me parece especialmente perigoso para cientistas em formação, porque pode acabar parecendo natural que ciência seja assim. E daí o dilema central do jogo: cumprir seus prazos e entregar os resultados enquanto você tenta balancear o seu tempo dentro e fora do laboratório (que é uma simplificação: todos os acadêmicos que eu conheço levam trabalho pra casa também).

Como eu disse no início, meu plano não era incluir os piores aspectos da pós-graduação no jogo (e nem isso eu fiz, tem coisas muito piores que podem acontecer durante um doutorado, e infelizmente acontecem) – era evocar as sensações e angústias (e alegrias também) que fizeram parte da minha pós-graduação e dos outros à minha volta, muito como uma piada interna. A minha pós-graduação não foi traumática, nem nada. E os aspectos que eu acho legais de fazer ciência – discutir, argumentar, desenhar experimentos, refletir sobre como as coisas funcionam – são super difíceis de capturar num jogo. Então, esses aspectos ruins acabam destacados, até porque se prestam mais ao meu tom de paródia. Pode ser que jogando o jogo você sinta alguma ansiedade, mas eu espero que você se divirta jogando. Ou não, talvez a ansiedade seja essencial para a mensagem do jogo.

Agradecimentos: Tiago Lubiana, por me incentivar a escrever algum texto sobre esse jogo. E às pós-graduandas e pós-graduandos cuja vivência na bancada inspiraram esse jogo.

Bioestatística com R – 4 – Correlação e Regressão

Esse é o último tutorial dessa introdução mínima a bioestatística com R. Vamos analisar correlações entre variáveis e fazer uma regressão.

Todas as tabelas usadas nos exemplos estão nessa pasta compartilhada.

Tutorial 1 – R como calculadora

Tutorial 2 – Usando e manipulando tabelas

Tutorial 3 – Inferência: teste t e ANOVA


Correlação

Pra começar, vamos importar duas tabelas novas. Uma possui dados sobre o tamanho do corpo de diferentes animais e a outra sobre longevidade de diferentes animais: bodymass.csv e longevity.csv

body.size.data = read.table("bodymass.csv", sep=";", header = T)
longevity.data = read.table("longevity.csv", sep=";", header = T)

O primeiro passo é fundir as duas tabelas, pra conseguir uma tabela que tenha animais com seus respectivos tamanhos corporais e longevidades. Pra isso, existe a função merge. Mas antes, vale olhar as tabelas, pra saber como fazer isso.

head(body.size.data)
head(longevity.data)

A função head mostra as primeiras linhas de uma tabela. O problema aqui é o seguinte: a coluna Species da tabela de tamanhos contém o nome completo da espécie. Já na outra tabela, gênero e espécie estão separados. Mas pra função merge funcionar, ela precisa de colunas de mesmo nome nas duas tabelas, que é o que ela vai usar pra comparar e mesclar os dados. Pra isso, precisamos usar mutate pra fazer com que a coluna Species da tabela de longevidade contenha o nome completo.

library(dplyr)
longevity.data = longevity.data %>%
  mutate(Species = paste(Genus, Species, sep = " "))

A função paste serve pra “colar” várias sequências de caracteres (strings) em uma só, separadas por um caractere (nesse caso, um espaço). Agora, mesclamos as tabelas numa nova:

wdata = merge(body.size.data, longevity.data, by = "Species")
summary(wdata)

O resultado tem 666 espécies, mais do que suficiente pra usarmos aqui.

Usando ggplot, podemos investigar visualmente a relação entre tamanho corporal e longevidade.

library(ggplot2)
qplot(data = wdata, x = log(Body.mass), y = Maximum.longevity..yrs.)

Note que transformamos o tamanho corporal, pra uma escala logarítmica.

E finalmente, a correlação é calculada com a função cor.

cor(x = wdata$Body.mass, y = wdata$Maximum.longevity..yrs.,
  use = "pairwise.complete.obs")
[1] 0.3290608

O argumento use serve pra indicar o que fazer com valores que não estão na tabela (por exemplo, uma espécie que esteja faltando um valor de longevidade). Valores que estejam faltando são representados por NA em R (not available). Nesse caso, a ordem é usar só as linhas (observações) que possuam o par de valores completo.

Regressão

Um passo além é fazer uma regressão linear. Saber qual a reta que melhor explica a relação entre as duas variáveis em questão.

Pra isso, temos que rodar um modelo linear. A função é lm.

modelo = lm(data = wdata, Maximum.longevity..yrs. ~ Body.mass)

O lado esquerdo do ~, na fórmula, indica a variável dependente. Do lado direito, a variável independente.

Investigando o modelo, você descobre várias coisas:

modelo
summary(modelo)

 

Coefficients:
               Estimate Std. Error t value Pr(>|t|)    
(Intercept)     -1.3126     1.0939   -1.20    0.231    
log(Body.mass)   4.1120     0.1971   20.86   <2e-16 ***

Dá pra ver o valor de p e os coeficientes da reta, por exemplo.

Agora, um detalhe. Na verdade plotamos o logaritmo da massa corporal. Então, vamos refazer o modelo com o logaritmo:

modelo = lm(data = wdata, Maximum.longevity..yrs. ~ log(Body.mass))
modelo
summary(modelo)

E a última coisa, pra fechar com chave de ouro. Mostrar a reta de regressão num plot. Sendo uma regressão linear, é bem fácil com ggplot:

p = qplot(data = wdata, x = log(Body.mass), y = Maximum.longevity..yrs.) +
 geom_smooth(method = "lm")
p

E voilá. A função geom_smooth() faz tudo pra você: roda o modelo (especificado como lm, como usamos antes), extrai os coeficientes e plota a reta, com o intervalo de confiança sombreado.


Espero que esses quatro tutoriais tenham servido pra quebrar o gelo em relação a usar R pra fazer análises simples. Que seja o início, primeiro passo pra análises mais complexas num futuro próximo, porque seria um desperdício não continuar se aprofundando em R, dá pra fazer muito mais do que eu mostrei aqui. Isso foi mesmo só pra facilitar uma transição, um começo. :)